Confuso, C. já não sabia se dormia e sonhava ou, se acordado, sonhava também. Nada fazia sentido. O jornal em suas mãos falava de efemérides que ele jurava já ter vivido. Outras lhe pareciam tão distantes, para o futuro e o passado, que agora C. acreditava estar sendo vítima de uma matreirice dos amigos. “Gozadores! Querem me fazer sentir ainda pior por conta desse time vergonhoso”, pensou C.
Olhou o relógio: 10 da manhã. Leu uma, duas páginas, toda a seção de política do jornal. Tornou a conferir as horas: 10 da manhã. Preocupou-se. Teria o tempo parado? Ou lera as páginas tão lentamente que 24h haviam se passado? Mas não sentiu fome, sede, sono. Um dia inteiro lendo! C. não podia acreditar. Já começara a desconfiar de sua sanidade.
Caderno de esportes
Buscando racionalidade, e tentando distrair os maus pensamentos, voltou ao jornal. Saltou a “economia” e foi direto para os “esportes”. Ato contínuo, checou o relógio: 10h01… C. preferiu não dar bola. Qual não foi sua surpresa ao se dar conta de que todo o caderno de esportes tratava de seu time. Levantou-se para pegar um copo d’água. Embora não estivesse com sede. Mas precisa, de alguma forma, afogar os devaneios.
Voltou à sala, ao jornal, ao caderno de esportes. Novamente C. teve a certeza de já ter vivido todas aquelas conquistas. Mas também tinha a certeza de nunca ter vivido ou ouvido sobre aquelas derrotas. Passado, presente e futuro. Tudo em um só lugar! Tudo em só dia! O estranhamento, não soube explicar a si mesmo, fez com que C. se lembrasse das aulas de filosofia. Mais precisamente de René Descartes.
Ainda que lampejos mnemônicos lhe surgissem, C. não sabia do que se lembrava ou do que precisava se lembrar de fato. Algo sobre um deus enganador, os sentidos, a anatomia do coração… nada fazia qualquer sentido. Embora aquele dia nada normal já deixasse de ser estranho, C. sentia que ainda precisava da lembrança que seria a chave para resolver toda aquela bagunça.
Cogito ergo sum
Cogitare, dubitandum, que expressão era essa que não vinha à mente de C.? Forçou um pouco mais as lembranças. Seu gato cruzou a sala. “Gato?! Mas eu nunca tive um gato”! Cogito ergo sum. Bendito gato! “Penso, logo existo”! Todo o consolo para aquele dia de cão veio nessa expressão latina. C. teve a concreta certeza de que existia. Ele pensava. Sabia que, mesmo que tudo aquilo que estava vivendo fosse a artimanha de um mágico ilusionista, ele era, ainda assim, um ser existente.
De posse dessa astuta lembrança C. podia colocar as dúvidas todas em ordem. As horas que não passavam, as notícias sem sentido. Tudo lhe vinha à mente agora: De omnibus dubitandum est. Pronto! Faria das dúvidas o alicerce de seu palácio de certezas concretas.
Folheou o jornal. De novo no caderno de esportes. “É preciso duvidar de tudo”. Mas deveria duvidar também daquelas que há momentos eram vitórias certas? Paradoxo! Poderia até começar colocando em dúvida as derrotas. Mas em algum momento as conquistas teriam de ser postas à prova. C. preferiu, então, começar por aquilo que lhe parecia ser menos penoso: duvidar das derrotas. Porém, por honestidade consigo, prometera contestar as vitórias absolutas.
Derrotas e vitórias duvidosas
Cuidara das derrotas. Mas para seu espanto, C. confirmou todas elas. Todas, inexoravelmente, eram verdadeiras. Fossem as que C. já tivera visto ou as que pareciam do futuro, todas as derrotas eram verdadeiras. Todavia, o hábito de olhar o relógio cobrou sua rotina: 10h01. C. vivia um dia agostiniano.
Vamos às vitórias! Embora temesse que fossem todas falsas. Soltou uma gargalhada, misto de alívio e medo. Todas as vitórias eram, também, verdadeiras. Tudo, jogadores, placares, adversários. Exatamente tudo fazia todo sentido. No entanto, C. continuava intrigado com os ponteiros do relógio que não arredavam pé das 10h01.
Penso, logo existo
Resolveu que precisava dormir. Mas quando se deitou na cama de um salto já estava novamente de pé. O despertador em cima da mesa de cabeceira marcava 15h34. O telefone tocou: “Te pego em 20 minutos”. Atordoado, C. não soube quem lhe falara e aonde iria. Só sabia que pensava e, por isso, existia.