Sobre cães e mascotes #11: Los Angeles 1984

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Bem, “aumigos” do Tailgate Zone, estamos ao vivo desde a redação TZ hoje para apresentar o mascote dessa semana: Sam, a Águia Olímpica; mascote dos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984. Assim, irei finalizar o que iniciei há duas colunas quando falei de Misha, o mascote dos Jogos Olímpicos de Moscou em 1980. O mascote de hoje foi o contra-ataque a este, ainda no contexto da Guerra Fria.

Onde entra o Galvão Bueno nessa história? Por mera coincidência, essa também foi a edição que marcou a estreia de Galvão Bueno narrando eventos olímpicos in loco.

Continuando essa guerra propagandística, Sam estava no epicentro da estratégia de comunicação americana. Como demonstrado na coluna de duas semanas atrás, Misha foi um sucesso estrondoso midiático, especialmente na Festa de Encerramento transmitida globalmente, e os americanos queriam devolver na mesma moeda.

Logo, todos os passos de Sam foram pensados milimetricamente desde sua criação. O comitê organizador daquela edição, o LAOOC, contatou várias empresas de animação e filmes do sul da Califórnia, região de Los Angeles, para que elas apresentassem suas idéias de concepção e marketing para a criação do mascote.

Sam, a Águia Olímpica. Mascote oficial dos Jogos Olímpicos de 1984

Só que havia um detalhe: o Presidente do Conselho de Administração da Disney também era membro do restrito Comitê Executivo do LAOOC. Preciso dizer qual foi a empresa escolhida para ficar responsável pelo mascote?

O processo de criação

A Disney entregou esta tarefa criativa para a equipe chefiada por Bob Moore, uma de suas lendas no departamento de arte. Segundo o próprio LAOOC em seu relatório oficial, a ideia inicial era usar algum símbolo do sul da Califórnia. Nesse sentido, plantas locais e o próprio sol, tão marcante naquela região seca, foram inicialmente cogitados. Porém, logo esses rabiscos iniciais foram descartados porque os resultados não foram satisfatórios e pensou-se em representar a Califórnia como um todo.

Ampliando a visão para o nível estadual, era óbvio usar como base o urso-cinzento que estampa a bandeira da Califórnia e é considerado o maior símbolo do estado. Mas, quando o trabalho já estava em estágio avançado, alguém lembrou que o mascote soviético de quatro anos atrás era um urso e a linha de trabalho foi abandonada imediatamente.

Bandeira de Califórnia
Bandeira do Estado da Califórnia.

Curiosidade: este mesmo urso-cinzento é o mascote da Universidade de Berkley, mas isso será assunto para outra coluna.

Então, já que os âmbitos local e estadual foram infrutíferos, resolveu-se usar um símbolo que representasse todo os Estados Unidos. Para isso, o apelo da águia de cabeça branca era irresistível. Esta espécie é o símbolo maior dos Estados Unidos, estando representada em seu emblemático brasão de armas. É o exato sinônimo para os Estados Unidos do que representa o urso-pardo-europeu, base de Misha como explicado na coluna de duas semanas atrás, para a Rússia. Daí surgiu a inspiração que resultou em “Sam, a Águia Olímpica”. Naturalmente para um mascote, apesar de ser uma águia, houve mudanças estilísticas para passar uma sensação simpática e gentil.

Greater coat of arms of the United States.svg
Brasão de armas dos Estados Unidos

A Origem do Nome

Como tudo dele fora milimetricamente planejado, seu nome também não caiu do céu. Tem algo mais americano do que “Sam”? Quando se pensa em Estados Unidos, automaticamente todos se lembram do Tio Sam, até inconscientemente. Mesmo sem ser oficial tal ligação, a semelhança das penas brancas avoadas na cabeça do mascote e dos cabelos brancos para fora da cartola do Tio Sam em seu cartaz emblemático é notória. Algo semelhante ocorre com a fita azul na cartola de ambos. No Tio Sam, dentro das fitas estão as estrelas da bandeira americana, já no mascote, os anéis olímpicos.

Porém, o cartaz do Tio Sam foi feito para recrutamento de tropas nas duas Guerras Mundiais, enquanto os Jogos Olímpicos por princípio são “pacifistas e apolíticos”. Era necessário uma melhor separação entre o meigo mascote olímpico e a figura belicosa do Tio Sam.

Poster de J.M. Flagg de 1917 com a figura do Tio Sam usada na propaganda de recrutamento de soldados dentro dos Estados Unidos nas duas guerras mundiais.

Para complicar ainda mais a situação, a Disney já tinha um personagem chamado “Eagle Sam” (Águia Sam) em uma atração em seu parque de diversões. Também já havia o “Sam Eagle” do The Muppet Show (aquele mesmo do Kermit, ou Caco como foi traduzido no Brasil).

Para resolver todos esses problemas, até de direitos autorais, foi incluído no nome do mascote a complementação “A Águia Olímpica”. Assim, a natureza olímpica do mascote ficaria latente.

Curiosidades de seu traço

Outra curiosidade é que nesse processo de “docilização” da figura do mascote, a águia acabou desenhada com uma parte traseira avantajada, que remete ao Pato Donald. Já seu bico, se visto frontalmente em desenho, mais parece o do Tio Patinhas e não de uma águia. Será que foi a Disney deixando sua marca no mascote de forma camuflada? É importante lembrar que Bob Moore passou parte de sua carreira na Disney no núcleo de criação de Pato Donald, que também era o responsável pelo Tio Patinhas.

A Ideia Desafortunada

Mas nem tudo são flores na história de Sam, mesmo que essa essa parte da história não seja muito difundida. Ainda no afã de contrabalançar Misha, o LAOOC queria uma aparição espetacular de Sam, a Águia Olímpica na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos. Na memória de todos ainda estava a despedida emocionante de Misha, já mostrada naquela coluna anterior linkada no início deste texto.

Para tal, foi planejado que uma águia de verdade voasse de ponta a ponta o Coliseu de Los Angeles durante a Cerimônia de Abertura para representar o mascote. Então, o LAOOC contratou Steve Hoddy, conhecido e competente treinador de aves. Ele indicou uma águia-real, o tipo de ave que melhor responde a esses treinamentos. Inclusive ele tinha um espécime pronto para a tarefa. Só que, apesar de haver algumas águias reais nos Estados Unidos, ela é mais identificada com seu habitat europeu, principalmente vastas áreas ao sul da então União Soviética.

Para marcar o nacionalismo americano, o LAOOC vetou o uso de qualquer águia que não fosse a águia de cabeça branca, espécie que inspirou a criação do mascote e que vive apenas na América do Norte. Mas havia um problema: naquela época a espécie estava ameaçada de extinção e não seria fácil encontrar um exemplar autorizado pelo governo para ser usado.

A solução encontrada foi pegar uma ave de nome Bomber que fora resgatada machucada de um parque no Alasca e enviada para viver em um centro de preservação da USFWS (a ICMBio do governo americano) perto de Baltimore.

A Tragédia Esquecida

Só que a ave já estava em cativeiro há mais de uma década, sedentária, bem acima do peso normal de uma águia selvagem e ainda teria que fazer uma viagem de costa a costa de Baltimore até Los Angeles. Hoddy teria alertado para todos esses riscos, sem contudo comover o LAOOC.

Dessa forma, ele começou os treinamentos com Bomber, que teve que reaprender a voar, pois esquecera em cativeiro. Ao mesmo tempo, seguia uma dieta rígida para perder o sobrepeso. Contudo, passados dois dias do primeiro voo de treinamento por cima do Coliseu, Bomber passou mal e faleceu, mesmo tendo apenas meia-idade. Depois dessa tragédia, o LAOOC finalmente se contentou apenas com um “mascote humano”, que entrou andando no mesmo ato do famoso “astronauta” na Cerimônia. Até pelo frisson do homem-foguete, a aparição de nosso personagem foi bastante apagada. Vitória claríssima de Misha.

Sam, (Los Angeles,1984) | Olympic mascots, 1984 summer olympics ...
Sam, a Águia Olímpica saudando os espectadores na Cerimônia de Abertura de Los Angeles 1984.

Sua Comercialização e a Tentativa de Popularização

Outro ponto marcante de Los Angeles 84 foi sua revolução comercial na história dos Jogos Olímpicos. Anteriormente, os Jogos eram custosos e davam prejuízos. Foi ela que ensinou ao Comitê Olímpico Internacional como ganhar muito dinheiro com o grandioso produto que ele tinha em mãos.

Nesse contexto, Sam foi muito importante e vendeu milhões em diversos souvenires, de broches a bichos de pelúcia, passando por colheres decorativas e mini-esculturas de Sam praticando vários esportes olímpicos. Comercialmente, Sam vendeu bastante, provavelmente muito mais que Misha, “travado” no sistema socialista da União Soviética. Porém, tal qual um típico estímulo capitalista de superconsumo, rapidamente o apelo de tais souvenires ficou restrito a colecionadores tão logo acabaram as festividades.

Por fim, após o grande sucesso do desenho animado japonês de Misha, Sam também ganhou seu próprio desenho animado no Japão no qual ele usava seus anéis olímpicos como algo mágico que o tirava das piores situações. Mas, ao contrário de seu urso antecessor, esse desenho nunca saiu do Japão e mesmo nele seu sucesso fora apenas mediano.

Legado

A tentativa foi grandiosa, envolveu até a toda-poderosa Disney, mas a verdade é que tão logo acabou os Jogos Olímpicos de 1984, Sam foi completamente esquecido e ninguém sequer lembra dele quando pensa no evento. Por outro lado, Misha ainda é a primeira imagem que vem à mente quando o assunto é Moscou 80 e ainda há estátuas dele em alguns lugares da antiga União Soviética. Logo, dentro da Guerra Fria, essa batalha pelas mentes foi perdida de forma indiscutível por Sam, a Águia Olímpica. Ou seja, Sam não foi feliz em sua missão principal.

Atualmente, Sam ainda pode ser visto em um evento anual de atletismo, o LA84 Youth Days Track and Field meet. Este evento é feito por uma Organização sem fins lucrativos, fundada ainda na época de Los Angeles 1984, que promove o interesse de jovens pelo atletismo. Em 2017, Sam também foi visto junto ao prefeito de Los Angeles, Eric Garcetti. Esta aparicição ocorreu durante as comemorações da confirmação da escolha da cidade como sede dos Jogos Olímpicos de 2028.

Au! Woof!

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