Sobre cães e mascotes #17: Munique 1972

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Olá “au,au”migos. Hoje trago mais uma mascote olímpico para a coluna. Já contei sobre a guerra fria das mascotes entre Misha, de Moscou 1980, e Sam, a Águia Olímpica, de Los Angeles 1984. Porém, eles foram apenas a 3ª e a 4ª mascotes da história dos Jogos Olímpicos de Verão. Para quitar essa “dívida” com o passado, inclusive com a minha espécie, decidi mostrar hoje como tudo começou com um cachorro adorável, igual a mim. Apresento-lhes Waldi, a mascote dos Jogos Olímpicos de Munique 1972 e a primeira mascote olímpico oficial.

Waldi, a mascote dos Jogos Olímpicos de Munique 1972.

Antecedentes

Apesar desse currículo, a história que originou Waldi começou muito antes, ainda em 1966. A Copa do Mundo de Futebol feita na Inglaterra naquele ano foi o primeiro grande evento esportivo a usar uma mascote. Ela serviu para aproximá-lo das crianças e ajudar a promover o evento e a sua sede. O leão Willie foi um sucesso e mostrou o quanto uma mascote associada ao merchandising de um evento pode alavancar sua popularidade e seus ganhos.

Ainda nessa onda, a agência responsável pelo marketing dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1968 em Grenoble, na França, criou um “personagem” para ajudar a promover os jogos. Na prática era uma mascote, mas sem a chancela do Comitê Olímpico Internacional (COI), evitou-se usar o real substantivo. Schuss foi uma febre e apareceu em todos os lugares durante as competições. Seu sucesso foi tanto que, posteriormente, o COI o reconheceu como “mascote não-oficial”. Ou seja, o vetusto comitê percebeu as possibilidades de alavancamento que uma boa mascote possui.

Grenoble 1968 – Mascot Shuss - theolympicdesign – Olympic Design ...
Schuss, o mascote não-oficial dos Jogos Olímpicos de Inverno Grenoble 1968

Criação

Dessa forma, o Comitê Organizador de Munique 1972 começou a desenhar possibilidades de uma mascote oficial para a competição. A ideia de Waldi teria surgido durante a confraternização de Natal dos funcionários do Comitê Organizador quando uma de suas designers gráficas, Elena Winschermann, teria feito um cachorrinho com uma massinha de modelar que estava disponível no ambiente da festa.

A partir dessa ideia, ela e seu supervisor, o internacionalmente renomado designer Otl Aicher, passaram a desenvolver os detalhes da mascote. Inicialmente, eles definiram que seria um real objeto de design, com certa altura, mas não muito alto no todo. Ao mesmo tempo, a intenção era que a mascote não fosse apenas um souvenir, mas também um brinquedo de qualidade e alto grau educativo para crianças, isso tudo sem deixar de valorizar os valores do olimpismo.

O resultado final foi a escolha de um daschlund, uma raça de cachorro de origem alemã considerada há muitas décadas um símbolo nacional. Esta raça também é apelidada de “cachorro salchicha” por seu tronco muito esticado em relação à altura da cabeça. Logo, ela se encaixou perfeitamente na ideia de “certa altura, mas não muita”. Por fim, é uma raça conhecida por sua agilidade, resistência e tenacidade, características valorizadas pelo olimpismo.

Seguindo a ideia de ser um bom brinquedo e ainda lembrando da massa de modelar da festa de Natal, Winschermann e Aicher pensaram em um mascote feito por vários pedaços, que poderiam ser peças de um quebra-cabeça com um eixo central. Daí vem a ideia de fazer a mascote como se fosse construído em blocos. A própria Elena Winschermann explica esse conceito na parte final do vídeo abaixo (áudio em alemão, com legendas em inglês).

Inserção no Marketing do Evento

Após montar em blocos a mascote, era a hora de escolher suas cores. Aqui há um ponto fundamental: a coloração da mascote precisa estar inserida dentro da ideia geral do “look of the games”, a arte abstrata que serve para uniformizar visualmente todos as imagens e locais de cada edição olímpica. Tal conceito seria repetido por várias mascotes olímpicas posteriores. No caso de Munique 1972, essa arte era inspirada no arco-íris pois a ideia é que fossem os “jogos do arco-íris”. Daí surgiu essa roupagem multi-colorida nos diferentes blocos que compõe o corpo de Waldi.

Porém, percebam que apesar de se inspirar no arco-íris, a cor vermelha não aparece em lugar algum e essa ausência foi intencional. Para evitar qualquer mínima alusão ao nefasto regime nazista, as cores vermelha e preta de sua bandeira foram “proibidas” em qualquer assunto relacionado aos Jogos de Munique.

“Look of the Games” de Munique 1972

A famosa Rota da Maratona

Waldi foi um sucesso não só com as crianças, cujo brinquedo de montagem em blocos se tornou icônico, mas tanto encantou também os adultos que a organização dos Jogos Olímpicos resolveu montar a rota da maratona para que ela tivesse a mesma forma de Waldi. Nesse desenho a cabeça ficou virada para o oeste.

Seria isso uma mera coincidência ou uma mensagem subliminar a favor do capitalismo na então dividida Alemanha da Guerra Fria, da qual Munique ficava em sua parte capitalista, ou seja o oeste da Europa? Se foi uma tentativa de mensagem, nunca ninguém a admitiu. Nem poderia, afinal o COI sempre insistiu na balela de que o esporte deve ser neutro politicamente.

Resultado

Waldi também fez relativo sucesso em emprestar sua imagem para vender os souvenirs de sempre relacionados aos Jogos Olímpicos, que agora recebiam um elemento novo para aumentar e diversificar as vendas além da própria logomarca oficial de cada edição dos Jogos. Digo relativo porque Misha e Sam, a Águia Olímpica mudaram completamente o patamar para mascotes olímpicos posteriormente. Até então, os resultados comerciais de Waldi foram considerados muito bons.

Legado

Até por ser a primeira mascote do que se tornou uma longa linhagem olímpica, o maior legado de Waldi foi seu conceito de ser um animal bastante representativo para a cultura do local sede da edição, ter uma forma bastante comunicativa com as crianças e ao mesmo tempo não ser tão irrealista a ponto de afastar os adultos. Foi algo tão forte, que foi seguido por todos os mascotes olímpicos vindouros por 20 anos. Essa linha só será quebrada com a mascote de Atlanta 1996, iniciando uma profunda crise da popularidade das mascotes olímpicas. Essa crise só será superada quando esta linha mestre de mascotes criada por Waldi é recuperada, inicialmente de forma tímida por Londres 2012 e de forma mais robusta pela Rio 2016.

Hodori, o tigre que foi a mascote dos Jogos Olímpicos de Seul 1988 ainda usou o conceito-base de Waldi mesmo 16 anos após seu surgimento.

Waldi também mostrou que não é só possível, mas recomendável, atrelar o conceito de uma mascote com uma linha de produtos com intuito pedagógico para crianças. Anos depois, isso abriria o espaço para que uma famosa marca de brinquedos de blocos de montar de plástico passasse a patrocinar diversas edições de Jogos Olímpicos e lançar linhas com a temática olímpica e, especialmente, com as mascotes.

Porém, a vida não reservou apenas coisas boas para Waldi. Ele também acabou associado negativamente com o aumento astronômico nos gastos públicos para as obras necessárias para que Munique sediasse os Jogos Olímpicos. Nesse sentido, posters não-oficiais satirizaram esse enorme gasto de 750 milhões de marcos, em valores da época, e usaram Waldi para marcar essa crítica. Por exemplo, em um deles Waldi usava a Torre Olímpica, principal ponto turístico de Munique relacionado ao evento, como hidrante para apagar incêndios. Em outro, uma situação ainda mais vexatória, usava a mesma Torre como poste para urinar.

Porém, para a eternidade, Waldi ficou como um “conceito-padrão” atemporal para ser seguido por mascotes esportivas de diversos eventos e é essa lição positiva que eu sempre gosto de ressaltar que meu “primo distante” ensinou ao mundo.

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