A insustentável leveza de ser uma bola

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“Pensei que não chegaria minha vez”, foi o que ela disse ao ser deixada ao léu junto de tantas outras de sua espécie. Sua história dentro daquele balde, no meio de concorrentes, todas brancas, com suas costuras bem definidas parecia uma clausura sem fim, um eterno “trabalho de Sísifo” a se repetir… queria ser livre.

enfim, livre.
fonte: michiganradio.org

O torpor causado pela luz, o oxigênio abundante no ambiente, todos aqueles sons, agora tornados claros, limpidamente perceptíveis fazia com que a “bola” experimentasse um misto de excitação, medo e prazer. Mas uma expectativa causava um sentimento dúbio: ser a desgraça de um rebatedor ou a de um arremessador?

Embora sempre ouvisse falar do prazer de ser o instrumento de um strikeout, sabia de outras suas ancestrais sobre a liberdade de voar pelos ares ao ser rebatida com força e ser a história de um home run.

História feita

Seu DNA de cortiça, lã, algodão e couro de vaca era história feita e história por fazer, pura potência. Nesse conjunto de materiais que formam a “bola” estava incrustado um orgulho de ter sido parte inexorável do esporte.

o maior de todos.
fonte: wamc.org

De suas antepassadas lhe chegara às costuras feitos de um homem que foi incrível jogando como rebatedor e arremessador. Ele fora grande, o maior para muitos, em dois dos maiores times do baseball.

De outras conhecidas da “bola” vinham histórias do jogador que superou o preconceito racial. A história desse homem é tão grandiosa que a “bola” soube que a 42 foi retirada em todas as equipes.

o eterno #42.
fonte: britannica.com

História por fazer

Estar ali no chão à espera de ser escolhida para enfim ser parte da história, sua história, ainda fez com que a “bola” resgatasse em sua memória a bravura de mulheres que mantiveram o baseball vivo durante um triste tempo de guerras entre os homens.

Embora a “bola” soubesse que estava em um ball park não sabia exatamente em qual. A única certeza era de que sua vez havia chegado. O cheiro doce da grama aparada e o acre odor da terra molhada davam-lhe a convicção da materialidade de seu tempo.

Sabia ainda que algo especial estava para acontecer naquele dia. Sussurros chegavam sobre um técnico que se aposentaria e de um tal arremessador que poderia estar fazendo seu último jogo pelo time da casa.

História em potência

Dos sussurros ouviam-se lamentos e junto aos lamentos uma emoção de reconhecimento e gratidão. O técnico que se despedia havia ganhado títulos, mais de 2.000 jogos no comando daquele time, tantas decisões, tanta entrega.

Do arremessador ouvira falar de sua intensidade, de ter sempre e exclusivamente vestido aquela camisa. Diziam ainda que talvez nem jogasse.

E de todas as expectativas havia ainda a da “bola”. De suas entranhas… de lá vinha a sensação de que aquele era seu dia. Mas de seu mais profundo íntimo brotava a dúvida: ser acariciada pelas mãos habilidosas de um pitcher ou se chocar contra o bastão e produzir o som oco do home run.

Sua história

O frenesi, o êxtase, a atmosfera eletrificada trazia a impressão de que o jogo já havia começado. Transcorriam as entradas e a “bola” ainda estava ali no chão. De suas parceiras chegava às suas costuras o placar de 5-0 para a equipe visitante.

Na terceira entrada o homem que usava uma máscara e vestia um uniforme preto pediu a um garoto que fosse buscar algumas bolas… os dedos suados e frios do garoto roçaram o corpo da “bola”. Mas ela ainda não fora apanhada. Se ela soubesse o que a aguardava talvez não tivesse praguejado contra o menino.

A quarta entrada passou sem grandes alterações. Novamente o homem de preto solicitou mais bolas. Porém, algo estranho estava no ar. Era a quinta entrada. Os visitantes colocaram no montinho seu ace. Do lado de fora, no chão, a “bola” sentiu que era aquele seu momento.

No home plate – como!? – estava o arremessador que poderia estar fazendo seu último jogo. Mas como?! Um arremessador que entra para rebater?

Expectativa

Aplausos, bonés sendo agitados pela torcida. O arremessador/rebatedor retribui acenando para todos com seu capacete negro. Era a quinta entrada.

O arremessador visitante manda o primeiro lançamento. Foul ball. No segundo a bolinha passa rente ao corpo do rebatedor (ou seria arremessador?). Mais um lançamento e uma de suas companheiras é acolhida pela luva do catcher. O quarto arremesso é chamado como strike. O quinto toca a terra. Poderia ser a vez da “bola”.

Mas não. O catcher apanha a companheira que sentira a aspereza do chão, confere se seu couro e costuras estão intactos e a lança na direção do ace visitante.

Então, o sexto arremesso é rebatido para a parte de trás do home plate.

Agora sim

Dentro do bolso do homem de preto dedos buscam a “bola”. Agora sim! Ela foi acolhida, recolhida, escolhida!

Nas mãos do arremessador visitante ela experimentou um quase orgasmo. Naquele momento a “bola” parecia ter optado por ser a desgraça do rebatedor. Braços alongados e o pitcher começa a fazer o movimento do arremesso. Num átimo de segundo a “bola” é disparada a 91 MPH.

A “bola” estava a 18m do bastão. Então, ela pensou que se fosse tocada por ele em cheio poderia voar. Assim, ela mudou de ideia e resolveu que seria a desgraça do arremessador.

E ela foi tocada pelo bastão. Saíra dele tão veloz quanto das mãos do arremessador. Todavia seu voo foi curto, ainda que intenso. Embora sem ainda saber se graça ou desgraça a havia tomado ela “morre” na luva do terceira base.

No entanto, da decepção inicial nascera o orgulho de ter presenciado dois ícones respeitosamente se cumprimentando pelo aceno do boné e capacete que respectivamente usavam o arremessador e aquele provisório rebatedor.

Naquele exato instante a “bola” entendeu que sua história seria contada por gerações de suas descendentes.

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