Vanessa Campos, mãe, professora, pedagoga. Nascida em 2015 aos 31 anos, quando entendeu que poderia enfim virar a chave…
Sou Vanessa, sou preta, 37 anos. Sinceramente creio que esse tem sido o tempo para aprender a não naturalizar atitudes discriminatórias relativas à minha pele. Atitudes essas oriundas da sociedade em geral, coletivo no qual incluo minha família preta, meus irmãos de cor e até a mim mesma. Não vou entrar nessa seara de atitudes discriminatórias por parte de quem sofre a discriminação, pois seria uma extensa discussão e terminaríamos no termo que me arde a garganta somente em pronunciá-lo: racismo reverso.
Longe de mim reduzir tudo isso a uma fala simplista, mas é fato: a atitude distorcida quanto ao seu “eu”, sua imagem ou simplesmente aquilo a que ela representa, é sim um comportamento aprendido.
Meu cabelo
Visitando minhas memórias de infância, não me recordo em admirar uma mulher preta. Mesmo tendo convivido, entre outras, com minha bisavó paterna, Dona Rosa, escravizada. Como morreu com quase 110 anos, ainda convivi um pouco com ela na infância. Levei muito, mas muito tempo para me dar conta do quanto esse tanto de história brasileira se misturou a minha história familiar. Mas minhas heroínas? Sempre mulheres lindas e loiras que me faziam respirar aliviada em não ser uma preta retinta. Moreninha? Mulatinha? Enfim… Meu cabelo?
Isso era um capítulo a parte. Já muito jovem minha mãe resolver me alisar, afinal, um cabelo crespo, além de considerado feio, dá muito trabalho. Eu alisei sim. Mas meu cabelo nem de longe parecia um cabelo como das minhas heroínas da TV ou mesmo das meninas brancas bonitas da escola. Em casa eu improvisava…. Colocava panos, toalhas, fingindo ter o cabelo liso dos sonhos. Em tempo: podemos ter heroínas de todas a cores. Mas é uma manobra perigosa quando ações levam uma criança a entender que nada em si mesma é passível de aceitação.
Representatividade
Gostaria de abrir um parêntese aqui para falar sobre representatividade. Aos 8 anos assisti ao meu primeiro filme no cinema. Nos bons tempos dos gigantescos cinemas de rua. O filme era “Ghost, do outro lado da vida.” Apesar da boa história, da engraçadíssima Whoopi Goldberg, da beleza estonteante do Patrick Swayze e do todo meu encantamento com aquele gigantesco jogo de imagem, luz e som…. Um detalhe me chamou imediatamente a atenção e até hoje me recordo do sentimento que tive: a mocinha do filme, a atriz Demi Moore, tinha cabelo curto, muito curto. E eu a achei linda! Apesar de. Não sei se é possível entender.
Na minha cabeça de menina preta, moradora do morro, ter cabelos longos e lisos era um traço de feminilidade e beleza. Como se nada diferente disso fizesse sentido. Mas sim, ela tinha cabelos curtos, era linda e tinha um namorado lindo. De fato, ela não era preta. Mas o simples detalhe do cabelo curto, ainda que liso, foi um pequeno lampejo de desconstrução de um padrão branco de beleza. Mas obviamente, ainda levaria muito tempo para que essa desconstrução atingisse outro patamar dentro de mim.
Ponto fora da curva
Quanto a já ter sofrido racismo, teria muitas histórias para contar. Apesar de não galgar lugares considerados majestosos em nossa sociedade, fui um ponto fora da curva. Com todas as lutas da infância e adolescência de mãe manicure a pai alcoólatra, desempregado na maior parte do tempo, aos 22 anos já tinha um diploma de curso superior de uma Universidade Pública nas mãos. Feito esse não atingido por 98% das meninas que conviviam comigo.
Na época em que cursei a Universidade Federal, nós pretos éramos 2% no nível superior. Lutei e agarrei as poucas oportunidades que tive. Mas isso não faz de mim um ícone do “se você quer você consegue.” Isso é uma das maiores falácias do sistema neoliberal. Nem de longe as oportunidades são iguais. Muita gente quer, e muito, mas não consegue. Tanto é assim que até hoje, depois de 15 anos de formada, não consegui dar prosseguimento aos estudos acadêmicos porque pagar as contas e pôr arroz e feijão na mesa seguem sendo prioridades.
Mas de qualquer forma, quando somos “pontos fora da curva” ainda que de forma modesta, passamos a conviver com pessoas que não fazem parte das suas origens. Ser concursada e até mesmo atuar na sede de órgãos públicos atrai os olhares estilo “o que você faz aqui?”. Como disse, seriam muitas histórias.
Uma história no consultório médico
Mas vou me limitar a contar uma de um dia em que estava com a Maria, minha filha. Até porque quero fazer alusão a ela em seguida. Em certa ocasião, estávamos em um consultório médico. O bairro do consultório é nobre. Um belo prédio comercial próximo ao mar. A médica, não me conhecia. Primeira consulta. Médica loira. Bem vestida. Essa história é curiosa porque eu não fui ofendida. Ao contrário. A médica acreditou estar me fazendo um bem. Sua fala era pausada, quase desenhada, me explicava conceitos muito, mas muito básicos sobre saúde feminina.
Por fim, quando eu perguntei sobre um determinado tipo de vacina para dar a Maria, ela me explicou (dando detalhes de como procurar o Postinho de Saúde) que o SUS iria cobrir a primeira e a segunda dose, mas que seria importante dar a terceira, paga. Até aí ok. Mas o melhor estava por vir. Cada dose é dada a cada 6 meses. A médica diz: “Olha você começa a guardar o dinheirinho desde agora tá? Porque aí quando chegar a hora, você vai poder pagar a terceira dose da vacina.”
A vacina custa entre R$ 300,00 e R$ 400,00. A minha aparência preta a fez deduzir que eu precisaria aguardar um ano para ter esse valor em mãos e pagar a vacina da menina. Não considerei uma atitude discriminatória. Mas foi sim preconceituosa (são coisas diferentes), pois partiu de uma ideia pré-concebida sobre minha imagem, e imagem da minha filha, na qual a pessoa envolvida não se permitiu nem ao menos perguntar sobre mim ou minhas condições de vida.
Uma outra geração. O novo sempre vem
Eu citei a história acima porque de certa forma envolve a Maria, mesmo que indiretamente. Percebo Maria com outro olhar sobre o preconceito e torço para que a geração dela possa de fato mudar muitas coisas. Ser mãe me ajudou muito no processo de auto aceitação. Meu cabelo foi alisado até os meus 32 anos de vida. Nessa época já era mãe.
Percebia na minha filha um desejo de cabelo liso muito característico em meninas pretas. Como educar com palavras e ter posturas antagônicas? Tive um medo terrível de assumir o cabelo crespo. Mas fechei meus olhos e fui. Melhor decisão da vida. Me apaixonei pelo meu cabelo, pois eu nem mesmo o conhecia. Fui alisada aos cinco anos de idade e odiava tanto meu DNA, que imaginava que em um mundo onde eu fosse perfeita, meu cabelo seria liso, com certeza, já que o crespo para mim era um traço de imperfeição. Pentear o cabelo da minha filha era um transtorno.
Hoje é quase terapêutico. Mas precisei me aceitar para entender isso. Recentemente tive uma grata surpresa. Maria, me disse: “Mãe, te acho uma mulher ‘empoderada’. Você assume sua diferença, seu cabelo, seu corpo que não é padrão. Não liga se não gostam!” Obviamente Maria ainda não sabe das lutas internas necessárias para que isso seja possível, mas sua fala foi um termômetro para entender que esse é o caminho.
Mãe e professora
Sou mãe, sou professora. Percebo que as crianças hoje têm percepções diferentes das pessoas da minha geração. Mas ainda assim, não vislumbro melhoras rápidas quanto ao racismo. Acho que o processo ainda é longo, se é que é possível. Já se passaram 132 anos desde a controversa Lei Áurea, e ainda nos escravizam.
Ainda temos irmãos pretos e irmãs pretas que tentam passar pelos processos de branqueamento para serem aceitos. Temos os que naturalizam sua condição de serem postos a margem. Falar me causa dor. Minha esperança é que nossas crianças pretas lutem com menos dor. Minha esperança é que nossas crianças brancas não carreguem a imposição da discriminação. Apesar de João Pedro, apesar de Miguel, apesar dos que nem chegamos a saber o nome.