Arena 84

Tempo de leitura: 6 minutos

“Ele” pensou que chamar aquilo de “arena” seria incoerente. Mas se “ele” penasse naquele como um Coliseu faria sentido. Aquele lugar, a Arena 84, era muito mais um campo de concentração do que um palco esportivo. No entanto, quem disse que naquele “antro” eram disputados jogos de qualquer esporte? “Ele” já tinha ouvido tantas histórias! Histórias pouco aprazíveis.

Neobras

O que “ele” também não sabia era onde ficava a Arena 84. Suas paredes frias e imundas pertenciam apenas aos iniciados. Aliás, na cidade de Neobras poucos sabiam onde ficavam quaisquer de seus pontos de referência. Neobras era um escombro. Mas não por falta de recursos para reergue-la. Senão porque a cidade “terra arrasada” era um projeto. O pouco que “ele” ouvira dizer era que a Arena 84 ficava no centro de Neobras.

Mas o centro de Neobras era um amontoado de entulhos, lixo, uma confusão de vielas, becos, sujeira que mal se podia circular sem cair em armadilhas naturais, lutar contra ratos do tamanho de cães ou se perder por completo. A Arena 84, diziam, estava ali sob algum monturo. Todavia, como não poderia deixar de ser, a Arena 84 era uma versão microcósmica da balbúrdia de toda Neobras.

Neobras é um mar de escombros e entulhos.
Neobras e seus escombros.
Fonte: Olhares

Porém, “ele” não descansaria sem antes saber o que se fazia e onde ficava exatamente a Arena 84. “Ele” não era jovem. Mas não existiam jovens em Neobras. A cidade de ar pútrido, atmosfera densa e espírito amargo não permitia que houvesse o que outrora se conhecia pelo nome de juventude. Na verdade, olhando para “ele” se poderia dizer que seus olhos guardavam algum brilho, mas os dentes ausentes, o cabelo desgrenhado e o corpo alquebrado sugeriam um ancião.

Alheios

Talvez essa réstia de brilho nos olhos d’ “ele” fosse a gana de conhecer e encontrar a maldita Arena 84. Porém, “ele” sabia que nos arredores de Neobras vivia uma comunidade de “alheios”. Os “alheios” não cabiam no regime de Neobras. Eram “traidores”, “alienados”, “corruptos”. Mas “ele” sabia que alguns “alheios” estavam ali, na verdade, porque sabiam demais sobre as entranhas de Neobras.

Nas incursões ao mundo dos “alheios” “ele” conheceu uma mulher de nome “J”. Assim como “ele”, “J” guardava um brilho nos olhos. Mas guardava muito mais. “J” guardava conhecimento, mapas, documentos. “J” sabia exatamente onde ficava a maldita Arena 84.

No entanto, “J contou a “ele” o que se passava na Arena 84. As arquibancadas do “antro”, como “J” se referia à Arena 84, eram ocupadas por fanáticos. Loucos que encenavam um espetáculo atroz de gritos, faces retorcidas pelo ódio, grunhidos indecifráveis. “Ele” soube que no “antro” só havia terror. E todo aquele ódio se voltava para o “setor 101”.

Afortunados e desafortunados

Era ali, no “setor 101”, que eram colocados os que, por sorte, morriam e os que, menos afortunados, seriam “alheios”. Mas ambos, afortunados e desafortunados, passariam por todos os níveis de humilhações, violência física e psicológica, por medo puro. “J” perguntou a “ele” se estaria disposto a enfrentar aquele calvário caso fosse descoberto como um infiltrado na Arena 84.

Entretanto, o brilho outrora dúbio nos olhos d’ “ele” agora era esfuziante, quase tão incandescente como brasa, podia-se tocá-lo. Tornara-se palpável. “J” deu as cópias do mapa com a localização da Arena 84. Porém, “J” temia por “ele”. E, por isso, repassou todas as histórias de terror que conhecia. A Arena 84 era algo infernal. “Ele” queria e correria todos os riscos.

Patriotas

De volta a Neobras, “ele” não quis esperar. Aproveitou-se da penumbra e se esgueirou entre vielas, atalhos até tomar o caminho para a Arena 84. Dos escombros que circundavam o “antro” “ele” fez seu abrigo para aquela noite. No outro dia, logo cedo, “ele” percebeu grande movimentação. No vai-e-vem de “patriotas” “ele” se misturou à turba.

Todavia, sem perceber, foi levado para dentro da Arena 84. Seus olhos se avermelharam. O brilho que havia foi sugado pelo aspecto sombrio, horroroso e imundo do “antro”. O que “ele” presenciava transcendia as descrições minuciosas de “J”. A Arena 84 era o terror. Todavia, “ele” não se arrependera de arriscar-se.

Temor e ansiedade

Lutando para entregar o temor misturado com ansiedade que sentia, “ele” resolveu fechar os olhos por alguns segundos. Mas os reflexos da mente obrigavam que as imagens gravadas na retina seguissem atemorizando “ele”. O coração batia descompassado e fazia “ele” tremer. Incontrolavelmente.

Mas ao reabrir os olhos “ele” pensou que teria sido melhor não o fazer. Era melhor não ter tido a ideia de estar ali na Arena 84. O espetáculo opressivo que agora “ele” experimentava não lhe permitia definições conhecidas. Era, porém, o medo. O mais sólido e ameaçador medo. Os ouvidos d’ “ele” foram agredidos por urros, gritos, berros originados no mais profundo ódio.

Os "patriotas" são loucos assassinos.
“Patriotas”.
Fonte: Imdb

Os “patriotas” executavam uma coreografia algo tosca misturada a cânticos complexos. “Ele” percebeu que precisava mimetizar tudo aquilo. Vagarosamente “ele” foi reproduzindo os movimentos e o ventriloquismo do início já se transformara no pronunciamento do indizível. “Ele” experienciava um êxtase que lhe trouxera “paz”.

Nesse momento de tímida tranquilidade “ele” percorreu o olhar por toda a Arena 84. Percebera um único espaço vazio em todo aquele aglomerado de ódio. Mas de início não compreendera. Todavia, quando seu olhar se voltou um pouco mais para cima notou a placa rota, suja, rachada: “SETOR 101”. “Ele” percebeu o que se passaria ali.

Setor 101

Pouco depois o “setor 101” começou a ser ocupado. As pessoas que preenchiam aquele espaço usavam roupas diferentes das dos “patriotas”. Um “macacão” marrom tomado de todo tipo de sujidade. Os “patriotas”, “ele” inclusive (também era um “patriota”), usavam um azul-marinho, bem escuro.

Ocupado todo o “setor 101” uma voz ressoou pelos alto-falantes: “que comece o espetáculo”! Porém, o que “ele” foi o “espetáculo” mais fúnebre de sua vida. Morte, tortura, sevícias, humilhações das mais desumanas. O corpo d’ “ele” estava empapado de suor. Sua roupa se aderira aos braços, pernas, costas e abdômen. “Ele” urinara em si próprio. Aquilo era o flagelo em toda sua acepção de vazio e desalento.

Máscaras-gaiola: o medo e o pavor de ver-se ser comido vivo.
O pavor.
Fonte: Pinterest

Ratos famintos em máscaras-gaiola eram acoplados aos rostos dos “condenados”. Ao abrirem-se as portinholas as criaturas comiam a face, se metiam nas bochechas, narinas. A morte se construía no pavor. Crianças eram apresentadas a doces envenenados. Mal comiam e começavam a ser retorcer, esganiçadas, pelo chão. Homens são pendurados em cadafalsos. Os que renunciam ao conhecimento e à verdade são transformados em “alheios”. Outros se mantinham firmes e recebiam a fortuna da morte.

Fim do espetáculo

Mas poucos foram os desafortunados que sobreviveram. Ao fim do espetáculo o que se via eram restos de corpos. O que se sentia era o cheiro acre de sangue. “Ele” não se percebia em si. No entanto, n’ “ele” brotara uma certeza. “Ele” já se sentia um “alheio”.

Porém, o degrado por opção seria melhor do que ser parte dos “patriotas” de Neobras. “Ele” tomou o rumo dos arredores da cidade. Quando cruzou o fino curso d’água que separava os limites de Neobras e das terras esquecidas “ele” disse para si mesmo: “minha sorte está lançada”.

Aos cacos, “ele” reencontrou “J”. Dali em diante “ele” sentiu que sua vida havia começado.

Deixe uma resposta